Uma das primeiras coisas que se aprende
numa graduação em história é que antes dos annales,
a história feita era a da mera narração de fatos, de um
encadeamento de acontecimentos, sem a produção de uma reflexão.
Vulgarmente chamamos esta história de positivista. A questão não é
tão simples, apesar de de fato estes historiadores do século XIX se
preocuparem muito mais com uma apresentação de eventos do que o
desenvolvimento de uma análise reflexiva. Contudo, eles tratam sim
de produzir algo mais do que a mera apresentação de fatos, um
exagero desprezá-los ao ponto de jogar seu trabalho na lata de lixo.
Paul Ricoeur vai preferir chamá-los de escola metódica, pois em seu
período era necessário justificar a separação da história das
outras ciências humanas, e para isso desenvolver e justificar seu
método era essencial. Jakob Burckhardt faz parte desta escola
historiográfica do século XIX.
O estado como obra de arte
é um capítulo separado de uma obra maior chamada A
cultura do renascimento na Itália.
Descobri isso lendo a ficha catalográfica do livro. Confesso que um
livrinho bonitinho e baratinho lançado pela penguin, custando menos
de 10 reais e discutindo a questão do Estado, me fisgou de imediato.
Creio que, nos últimos tempos a questão do Estado caiu num limbo
amaldiçoado dentro das ciências humanas. Não se discute mais esta
questão, que é verdade já foi exaustiva e totalitária em outros
momentos – e qual corrente em algum momento não o foi?
Possivelmente, desejar tratar da questão do Estado hoje em dia na
academia, pode lhe render a alcunha de “marxista”, e ao contrário
do que se diz por aí das universidade brasileiras, isto
provavelmente estará mais perto de um xingamento do que um elogio.
Burckhardt,
como a grande maioria dos historiadores da época era alguma coisa do
espectro da direita e que apostava na monarquia como forma de
organização social. Isto é importante para entender a exposição
feita por ele ao longo do livro, que é verdade, não estando atento
a esta questão é uma exposição cronológica de acontecimentos,
com pitadas de teoria ao longo do texto. É perceptível o foco que
J. Burckhardt dá para a ação de certos indivíduos no exercício e
consolidação do Estado. Seu entendimento do Estado enquanto obra de
arte se justifica no fato de que “eram produto da reflexão,
criações conscientes, embasadas em manifestos e bem calculados
fundamentos” (p.90). De alguma forma, há a visão do Estado
enquanto um aparelho, não como um simples monstro pesado, é através
do Estado que o governo pode agir. Fruto da reflexão, da consciência
e do cálculo, Burckhardt está colocando a razão em campo. O
curioso é que Burckhardt tem um certo desprezo pela República de
Veneza, que aparece até pouco, ao termos a proporção de sua
importância. Afinal, por ser Burckhardt um conservador monarquista,
nada mais assustador do que a ideia de conceber uma República.
Assim, fica a reflexão importante para
nossos tempos. Podemos perceber como em dado momento histórico era
de entendimento geral de que a instituição de repúblicas trariam a
mera devassidão moral, e de fato só vemos este quadro mudar no
mundo ocidental com o fim da Primeira Guerra. Por isso era necessário
garantir o controle do Estado e das decisões do governo por pessoas
preparadas, pessoas de bom caráter. Isto é a constituição de uma
aristocracia, de um seleto grupo que governa ante a irracionalidade
do povo (este é um perigo, e devasso). Sem esta composição, não
há Estado enquanto obra de arte, há barbárie. Para nós fica claro
o contorno autoritário, fascista e ditatorial deste raciocínio, mas
observar esta questão por um viés histórico é fundamental para
compreendermos o momento atual e a possibilidade de transformação.
Afinal, o Estado seria um aparelho, e não uma entidade, para Jakob
Burckhardt isto está claro e talvez este seja um ponto em que
concordamos.