sábado, 18 de março de 2017

O Estado como obra de arte - Jakob Burckhardt


Uma das primeiras coisas que se aprende numa graduação em história é que antes dos annales, a história feita era a da mera narração de fatos, de um encadeamento de acontecimentos, sem a produção de uma reflexão. Vulgarmente chamamos esta história de positivista. A questão não é tão simples, apesar de de fato estes historiadores do século XIX se preocuparem muito mais com uma apresentação de eventos do que o desenvolvimento de uma análise reflexiva. Contudo, eles tratam sim de produzir algo mais do que a mera apresentação de fatos, um exagero desprezá-los ao ponto de jogar seu trabalho na lata de lixo. Paul Ricoeur vai preferir chamá-los de escola metódica, pois em seu período era necessário justificar a separação da história das outras ciências humanas, e para isso desenvolver e justificar seu método era essencial. Jakob Burckhardt faz parte desta escola historiográfica do século XIX.
O estado como obra de arte é um capítulo separado de uma obra maior chamada A cultura do renascimento na Itália. Descobri isso lendo a ficha catalográfica do livro. Confesso que um livrinho bonitinho e baratinho lançado pela penguin, custando menos de 10 reais e discutindo a questão do Estado, me fisgou de imediato. Creio que, nos últimos tempos a questão do Estado caiu num limbo amaldiçoado dentro das ciências humanas. Não se discute mais esta questão, que é verdade já foi exaustiva e totalitária em outros momentos – e qual corrente em algum momento não o foi? Possivelmente, desejar tratar da questão do Estado hoje em dia na academia, pode lhe render a alcunha de “marxista”, e ao contrário do que se diz por aí das universidade brasileiras, isto provavelmente estará mais perto de um xingamento do que um elogio.
Burckhardt, como a grande maioria dos historiadores da época era alguma coisa do espectro da direita e que apostava na monarquia como forma de organização social. Isto é importante para entender a exposição feita por ele ao longo do livro, que é verdade, não estando atento a esta questão é uma exposição cronológica de acontecimentos, com pitadas de teoria ao longo do texto. É perceptível o foco que J. Burckhardt dá para a ação de certos indivíduos no exercício e consolidação do Estado. Seu entendimento do Estado enquanto obra de arte se justifica no fato de que “eram produto da reflexão, criações conscientes, embasadas em manifestos e bem calculados fundamentos” (p.90). De alguma forma, há a visão do Estado enquanto um aparelho, não como um simples monstro pesado, é através do Estado que o governo pode agir. Fruto da reflexão, da consciência e do cálculo, Burckhardt está colocando a razão em campo. O curioso é que Burckhardt tem um certo desprezo pela República de Veneza, que aparece até pouco, ao termos a proporção de sua importância. Afinal, por ser Burckhardt um conservador monarquista, nada mais assustador do que a ideia de conceber uma República.
Assim, fica a reflexão importante para nossos tempos. Podemos perceber como em dado momento histórico era de entendimento geral de que a instituição de repúblicas trariam a mera devassidão moral, e de fato só vemos este quadro mudar no mundo ocidental com o fim da Primeira Guerra. Por isso era necessário garantir o controle do Estado e das decisões do governo por pessoas preparadas, pessoas de bom caráter. Isto é a constituição de uma aristocracia, de um seleto grupo que governa ante a irracionalidade do povo (este é um perigo, e devasso). Sem esta composição, não há Estado enquanto obra de arte, há barbárie. Para nós fica claro o contorno autoritário, fascista e ditatorial deste raciocínio, mas observar esta questão por um viés histórico é fundamental para compreendermos o momento atual e a possibilidade de transformação. Afinal, o Estado seria um aparelho, e não uma entidade, para Jakob Burckhardt isto está claro e talvez este seja um ponto em que concordamos.


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