domingo, 31 de agosto de 2014

A memória entre a política e a emoção - Luisa Passerini


Desde muito tempo o Homem buscou no passado um diálogo com seu tempo presente. Seja Bloch e sua colocação firme sobre todo trabalho histórico ser a respeito do tempo presente, Bloch era um medievalista e a situação pode ser tornar mais crítica quando pegamos os acontecimentos traumáticos das recentes ditaduras militares da América. Podem ser eventos passados, mas muito bem marcados no presente e ainda atuantes, como bem observou Vladimir Saflate, muitos cargos importantes ainda são geridos por pessoas que tiveram sua formação no período militar, ou ainda são tocados da mesma forma, com a mesma tecnologia burocrática e ética. Desta forma o século XX trouxe à tona a necessidade de uma história do tempo presente. É neste século, em especial na sua segunda metade, que vemos vários países dando atenção para a História ainda presente e fundando institutos preocupados com tal desafio. Mesmo que tenham surgido sob a sombra de alguma pasta ministerial, não demoraram muito em galgar sua independência e verem seus cargos institucionais ocupados por historiadores profissionais. Nesta direção podemos fazer eco a observação de Pieter Lagrou quando diz que a história não é exclusiva aos historiadores, pois enquanto questão de cidadania deve ser aberta para aqueles excluídos do círculo profissional da área. É algo que também faz parte dos cidadãos, por isso eles devem ser convidados para o debate.
Quando se trata de colocar a história em debate, mais do que deixando claro que se faz parte dela, mas que se fala algo que boa parte das pessoas viveram, o recurso oral talvez seja um dos mais fantásticos para isso. Neste sentido cresce cada vez mais a busca por recursos orais, como entrevistas. Outros meios menos diretos que por sorte acabam sobrevivendo a catástrofes, seja um diário ou um conjunto de cartas, também são utilizados. São formas de dialogar diretamente com algo difícil de rastrear e penetrar: as emoções e os sentimentos.
Apesar da caricatura que se faz desses elementos vistos como não racionais, eles são vitais para muitas situações. Como pensar na experiência do uso de violência em busca de fins políticos nos anos 1970, sem recorrer a um diálogo mais direto? Passerini trabalhou com entrevistas, dando voz as pessoas que participaram desse processo, dando a possibilidade de se explicarem, de refletirem e debaterem sobre um assunto ainda fresco, com feridas ainda abertas. Também foi por meio de cartas que conseguiu rastrear a construção histórica de elementos tão abstratos quanto a política, porém muito menos abordados. Quem sabe possamos pegar uma carona em Braudel e entendermos cada tempo como constituindo de suas peculiaridades inerentes a vontade humana, que por mais amada ou odiada que sejam estas peculiaridades, elas se mostram presentes no tempo, apesar de seu tempo de existência ser claramente limitado, não faz com que sejam menos atuantes. Braudel pensa na longa duração, nós já não pretendemos ver o tempo desta forma, porém o que está claro é a peculiaridade de cada tempo, e este não é um elemento bem marcado.
O que Passerini parece apontar, e Arlette Farge também, é para um campo caro aos historiadores, que talvez já foi palco de algumas aventuras com o nome de “história das mentalidades”, mas há coisas vitais em elementos pouco concretos dentro da investigação histórica, como os sentimentos, crenças, formas de pensar e agir que só podem ocorrer em determinado tempo. Será que as formas de encarar a violência ou sentimentos de amor sempre foram uniformes? É uma pergunta difícil de responder.

Referências:

LAGROU, Pieter. A história do tempo presente na Europa depois de 1945. in: 
SAFLATE, Vladimir. A ditadura venceu. in: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2014/04/1433855-a-ditadura-venceu.shtml
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. A longa duração. in: Escritos sobre a história. São Paulo: perspectiva, 2009.
FARGE, Alette. Lugares para a História. Belo Horizonte: autêntica, 2011.


sábado, 9 de agosto de 2014

Futuro Passado - Reinhart Koselleck


Quando Nietzsche jogou seu martelo na verdade, ficou impossível falar tal palavra e continuar com a mesma conotação anterior. Dizer isso em meio a concepção de que existe uma verdade absoluta da qual nos aproximamos conforme a sociedade progride, causo muito barulho, mudou muita coisa. Perigoso martelo este jogado no meio da roda de pessoas proclamadas, por elas mesmas e por outras, como detentoras da verdade, não se podia fingir se surto perante tamanho barulho do ruir de uma estátua que se acreditava tão sólida como a verdade. Desde então, e Foucault foi quem nos colocou isso da forma mais clara, se entende a verdade como uma construção, um jogo de poder, algo que não é encontrado, mas sim feito, criado. O homem é um criador, esta é sua maior qualidade, sua defesa perante os perigos do mundo. Diferente do tigre ele não tem garrafas e presas, ou da cobra com sua forma esguia e veneno, o homem para se defender inventa uma arma, uma casa, um muro, um deus para garantir sua existência. Estas invenções passam pelas teorias também, mas não podemos tomar o preciso termo “invenção” por mentira, afinal o avião e a lâmpada são invenções e estão ai tão reais e verdadeiras quanto você ou eu.
A história também passa por esse processo de verdade. Melhor, a concepção de história e o historicismo passam por este processo de legitimação e aceitação como verdade. Se pegarmos uma “história da história”, vamos perceber que a relação do homem para com o entendimento de seu passado mudou e muda através dos tempos, o que era válido antes já não é mais válido agora. Por exemplo a concepção de uma história cíclica atualmente revela um desconhecimento de teoria historiográfica dos mais graves. Se aceita uma verossimilhança com o passado, mas não uma repetição, tal concepção se mostra um absurdo. Porém durante algum tempo os gregos entendiam isto como uma verdade absoluta, a história para eles era por fim cíclica. Da mesma forma para o gregos jurar por algum de seus deuses, da mesma forma que ocorria até algum tempo atrás, era suficiente para provar que a afirmação era verdade. Hoje preferimos o cientificamente comprovado.
Do mesmo jeito que a verdade passa por um processo, a concepção de história também. Reinhart Koselleck, assim como outros sujeitos da historiografia alemã, parecem desconhecidos nesse cenário intelectual brasileiro marcado pela influência francesa. Acaba-se relevando que antes da França ser a meca da história, a Alemanha o era e os trabalhos de Leopold von Ranke são fundamentais para o conhecimento histórico enquanto acadêmico. Mesmo sendo fundamental, a obra de Koselleck ainda é um tanto quanto periférica se compararmos com outros autores, em especial os franceses. Claro, não podemos esquecer que seu trabalho é bem mais específico que o de um Deleuze.
Koselleck trata da relação da humanidade (ocidental) com o conceito de história. Como ele bem ilustra, nem sempre se entendeu da mesma, elemento de fácil percepção ao verificarmos o uso de duas palavras distintas na língua alemã para se referir a história. O termo mais antigo é o Historie, muito mais próximo lexicalmente a sua origem latina do que o termo atual Geschichte. A palavra Historie se preza muito mais a uma história que serve de lição moral, de doutrinamento, de indicação do que fazer, talvez dai venha a concepção de que não se sabe para onde vai sem saber de onde veio – o que sabemos não servir para todos e tudo. Da mesma forma que esta palavra antiga já não é mais usada, seu conceito começa por volta do século XVIII a ser substituído por Geschichte.
A palavra Geschichte tem sua raiz etimológica na palavra acontecimento (geschehen). De certa forma teremos a mudança de uma concepção de história que se prezava antes em ajudar as pessoas nas suas decisões futuras, enquanto mais tarde muda para um estudo dos acontecimentos, logo tudo que ocorreu no passado pode fazer parte da história. Mais do que isso, o termo Historie está muito mais ligado a ideia de que o estudo do passado nos indica qual decisões tomar, por isso se liga a Historia magistra vitae, algo como “história senhora da vida”, já que o estudo do passado seria nosso mestre.
Já o termo Geschichte se mostra muito mais aberto e coerente com nossa modernidade. Pois o desenrolar histórico se faz por meio de acontecimentos. A revolução, o progresso, o destino e o desenvolvimento são palavras ligadas diretamente a nossa concepção do desenrolar histórico. Se tomarmos por conta de que a revolução é feita pelo povo, o progresso pela humanidade e o destino e o desenvolvimento pelo homem, vamos perceber que esta mudança léxica leva a uma nova forma de lidar com este passado, de interpretá-lo. Neste sentido o homem é muito mais um senhor de seus atos, capaz de interferir no seu tempo e na natureza pois, sendo o sujeito histórico que é, pode interferir e decidir como serão os acontecimentos. Não nos cabe mais pensar o passado ignorando a construção historiográfica, tão pouco ignorar o passado acreditando ser este o nosso método para construir o futuro da forma mais eficiente e desejada possível. Desde então todos se colocam como altares da história, acreditando que o simples uso do passado lhes garante tal status. O uso do passado cria formas no presente. Nossa experiência se liga a expectativa.