domingo, 24 de março de 2013

A Varanda do Frangipani - Mia Couto




A memória, assim como o saber, é um objeto de poder. Sendo assim, tal objeto acaba se mostrando lugar de disputas, embates e combates. A memória é algo inventado e produzido, da mesma forma que um carro ou um projeto arquitetônico. Da mesma maneira que os dois exemplos citados, a memória é atravessada de significados, não sendo por isso um lugar “mentiroso” ou neutro. Da mesma forma que um corpo é desenterrado, a memória também o pode ser, e assim como o corpo, a memória também se transforma conforme é desterrada. E este pode ser um fantasma, um xipoco, que vaga entre nós de forma silenciosa mas nos causando calafrios.
Uma prática tão simples, como a investigação policial, acaba se mostrando carregada de mais significados do que o simples desejo de ver resolvido um mistério. Tal prática acaba se revelando portadora de uma ameaça, de um ultimato, é um pedido para que aquelas memórias esquecidas numa fortaleza abandonada, no inóspito interior de um país ignorado, aceitem seu fim e abram mão de seu passado, mesmo que este tempo não se apresente mais existente, também é confuso e impreciso. De qualquer forma, não é uma cronologia ou História (enquanto conhecimento científico) que se busca no já inexistente passado, mas sim a memória. Por isso que se entrevistam os velhos, para saber do que eles lembram e a partir disso, construir algo, no caso evidências que levariam a resolução do caso.
É com o suporte dado pela memória que os nazistas conseguiram tanto apoio popular (1ª guerra, império alemão e o kaiser, etc), é sob a égide de uma revolução da qual ninguém mais resta vivo que a França orienta boa parte de sua política e mistica cultural dentro do ocidente, é nesta memória produzida que o governo justifica o financiamento de festas (Carnavais, festa da uva, Oktoberfest, etc) e utiliza estas festas associadas a memória para obter resultados políticos – que em termos mais próximos a uma “conversa de bar”, podemos chamar de pão e circo, mas não limitemos apenas a isto.
Entretanto há coisas que não se quer esquecer. As pessoas não aceitam ordens contra a sua vontade. Ninguém é obrigado a nada e aceitamos porque queremos ou, no momento tal opção se mostra conveniente. Neste sentido negociamos de alguma forma com a “proposta” a nós ordenada. Desta forma os idosos do asilo dão, ao longo da narrativa, suas respostas ao que Izidine faz na fortaleza. No fundo brincam com ele, já que este é um estrangeiro. Não aceitam de prontidão que algum bárbaro, que gagueja e não fala a língua, tente brincar com sua memória, por isso usam da própria matéria-prima para brincar com ele, confundi-lo ou até mesmo rir. Sabem, portanto, que memória não é, mas constitui a parte mais atuante da história, já que partindo dela é que se inventa o passado.
No movimento de desenterrar as coisas e rememorar, a trama se desenrola, e junto com toda esta rememoração uma série de questões se propõem, todas elas, da mesma forma que o fantasma, tem seu lugar no passado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário