segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Urubu - Douglas R. Grubel


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Certa vez li em algum lugar que o livro deve ser um objeto de transformação. O livro deve conversar com você, deve servir para você como um óculos, você usa para mudar sua visão sobre algo. Ou evitando o caráter de correção que o óculos pode ter, a leitura pode trazer efeitos semelhantes a consumir alguma droga, ele pode mudar sua forma de ver e perceber as coisas. Não devemos ter medo do livro, nem da mudança. Constantemente estamos trilhando algum caminho, às vezes mais rápido outras vezes mais devagar. Muitas vezes a leitura pode te ajudar, mas nem sempre.
O que é muito bom observar é que de alguma forma o livro aqui não ganha nenhum bastião especial. Ele foi encontrado no lixo, desprezado como tantas outras coisas. Mas é a partir deste acontecimento que outros se tornam possíveis. E para isto talvez não houvesse maneira melhor de dizer isso do que da forma que foi dito, no caso publicando esta história de forma independente, quase anônima e a um custo baixo. Além do mais a forma com que irá circular, literalmente passando de mão em mão, talvez seja uma das mais bonitas atualmente.
Pode parecer clichê falar sobre isso, mas cada vez mais parece importante não tratar as pessoas como burras. Acreditar no seu conhecimento e capacidade de raciocínio, reconhecer isso no homem popular, algo que parece muito bem ignorado pela tradicional classe-média brasileira. O grande personagem da história é um sujeito solitário, que vive num lixão, que pinça as coisas feito um urubu que pinça a carniça. A metáfora do urubu é mais do que uma simples referência ao lixão, o personagem faz feito esta ave: pinça o que lhe interessa e escolhe o que irá ingerir. Por mais que existam limitações, ele estará escolhendo o que ingerir. Gosto da metáfora das tatuagens, onde diferente do ferro quente que marca o gado, você está escolhendo quais serão suas marcas no corpo. Em alguma medida o livro possibilita isto, especialmente a literatura, ou o livro que lemos deitado na cama, já que este não possui obrigatoriedade alguma.
Não só é uma história como é também uma profanação, e este ato é cada vez mais necessário hoje em dia, até porque parece que apenas as crianças ainda conseguem faze-lo de forma autêntica. É brincando (Spielen, Play, Jour) que se pode construir coisas novas. E profanando, tirando as coisas de seu lugar e função no caso, que se possibilita novas visões. Profanar o livro talvez ajude a relacionar-se com ele. E a relação se mostra como uma das coisas mais importantes para o ser humano, já que o livro pouco importa se eu não me relaciono com ele, e esta relação acaba demonstrando muito mais do que simples entretenimento capitalista, onde parece haver uma simples busca por prazeres secretos e passiveis de consumo.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

As Revoluções Africanas - Paulo Fagundes Visentini


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Dizem que a expressão terceiro mundo não tem mais cabimento. Em larga medida faz sentido esta observação, já que terceiro mundo está muito ligado a uma série de observações descabíveis para muitas coisas. Porém vejo ai um agrupamento identitário, terceiro mundo acaba aglutinando boa parte deste mundo “esquecido”, que parece ficar nas margens do Império Romano. É comum encontrar pessoas que saibam as capitais de inúmeros países europeus, entretanto encontrar alguém que entenda África como um continente e não como um país, é algo raro. Não bastasse, constantemente são feitas comparações entre o lugar em que vivemos e alguma experiência europeia. Eu por exemplo, faço isto repetidamente ao discutir mobilidade urbana e o uso de bicicletas. Confesso que nem sempre é proposital, mas quando o é sei que efeito estou produzindo ao citar o uso de bicicletas na Alemanha. Poderia citar Cuba, que segundo soube por boatos, está investindo nos últimos anos nesta mesma questão, mas sei que citar Alemanha acaba soando bem mais eficiente e abrangente.
Uma das coisas que podemos observar dai é a falta de crédito dado a capacidade destes países periféricos, que estão a margem em alguma medida. Parece que nem sempre se busca uma autonomia, um caminho próprio e mais adaptado a nossas necessidades. Um exemplo prático foi quando uma amiga minha conversava com uma intercambista alemã, ambas estudantes de Arquitetura e Urbanismo. A garota alemã perguntava duvidosa e quase revoltada porque aqui nós evitávamos construir na beira do rio, já que ele é bonito e aproveitaria melhor o espaço, além do que é assim que eles fazem na Alemanha. Porém, cabe lembrar, que na Alemanha eles não tem chuvas como temos aqui, não tem a natureza que temos aqui, nem o solo deve ser semelhante (aqui no Vale do Itajaí a terra é bem vermelha). O elemento claro é que não estamos acostumados, e muito menos somos educados para lidar com estas particularidades e necessidades de cada caso e lugar.
Em larga escala este desejo estará presente nas três empreitadas trabalhadas ao longo deste livro. Poderiam tentar outros caminhos, mas, de alguma forma, escolheram tentar o socialismo. Muitas vezes esta tendência acabava ocorrendo por um motivo muitas vezes ignorado ao citar tais casos. Por exemplo, Hailé Selassié tinha seu regime apoiado pelos EUA. Movimentos sempre precisam de apoio externo, e no caso etíope não viria da casa branca, como a bipolaridade do período acabava te obrigando a escolher um lado, alinhar-se a URSS aparece como a opção mais sensata. Até porque já havia uma simpatia pelo socialismo. É ignorado que esta escolha pelo socialismo representa uma possibilidade de autonomia, dificilmente anunciada no capitalismo americano apoiador do Imperador (da mesma forma os EUA proporcionavam uma certa autonomia para Hailé Selassié, cabe observar).
Se entrarmos na discussão de quão socialista ou não foram estes episódios, creio que será uma longa conversa que não quero fazer agora. Caio no pecado do cientista e busco focos possíveis ao longo desta discussão. Vale a pena olhar como esta busca por autonomia é algo penoso aos países alocados de alguma forma dentro do jargão 3º mundo. Mas ao mesmo tempo podemos perceber ai uma capacidade inovadora incrível, que indica ser dificílima no engessado 1º mundo. E para isto acredito que saber de seu lugar facilita o movimentar-se.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O tambor (filme)

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          Os tempos mais antigos parecem mais plurais. O Estado sempre se mostra mais “fraco” no passado, e nisto vale lembrar que a essência do Estado é autoritária. Talvez por isso tempos anteriores acabam dando brechas de sua pluralidade. Isso é o que me interessa no enclave formado pela cidade de Danzig/Gdańsk (local onde se passa o filme), esta possível pluralidade. Apesar da maioria alemã, o filme acaba ilustrando a relação constante entre cassúbios, poloneses, judeus e alemães. Cada um com seus costumes particulares, e especialmente sua língua. É na língua e na linguagem que podemos clivar diferenças, e talvez a diferença e a pluralidade sejam mais necessários hoje do que nunca, já que a globalização parece diminuí-las e com isso aguçar nosso desejo por ela.
          O grande elemento acaba sendo a decepção, ou negação de Oskar para com a sociedade ao seu redor, ou "mundo adulto", que simboliza de alguma forma o futuro que se anuncia. Lhe desagrada e assim sendo ele decide parar de crescer, negando assim a desagradável possibilidade que anunciada por este crescimento. Não por acaso que o sujeito que deseja marcar na soleira da porta o progresso da altura de Oskar, é o nazista mais fervoroso da miríade de personagens. Ele que está ansioso pelo crescimento de Oskar, é quem se volta ao nazismo de tal forma que acabará esquecendo de sua esposa, deixando de alguma forma o amor de lado. Totalizando sua vida em um único foco, como parece ter acontecido com a população de língua alemã durante este famoso episódio - os nazis tinham 90% ou mais de aprovação popular.
          Apesar de estarmos acostumados a assim enxergar o assunto, o nazismo não surgirá do nada, a Alemanha se mostrou durante muito tempo como uma nação altamente militarizada, assim como com uma ciência de ponta. Da mesma forma o ódio aos judeus, o orgulho alemão, campos de concentração, militarismo e patriotismo surgem antes de Adolfinho e sua trupe. Ao negar a vida adulta, Oskar negava também os adultos ao seu redor, e eles estavam encharcados nestes elementos. E é este desejo por tantas coisas que o nazismo se pretendia dar conta (a promessa de um mundo mais “belo”, por exemplo1), que acaba com todo o pluralismo possível no princípio do filme, e que depois vai se deteriorando junto com a própria cidade de Danzig. É o desejo por tornar Danzig alemã, que acabará destruindo ela, ou ao menos o que ela foi. A cidade era aquela mescla toda, e lidar com o que está seria mais produtivo do que simplesmente destruir tudo2.
          Uma rápida análise histórica pode ser válida. Teremos o autor da obra indo até o passado para pensar reflexões de seu tempo. O tema da segunda guerra não era estudado nas escolas alemãs até a segunda metade da década de 1970, ficando assim o assunto muito a margem, o que é de se espantar ao pensarmos o caso alemão e a importância do assunto. Entender o nazismo como algo mais do que maluquice ou babaquice das pessoas também seria um bom ponto, já que boa parte dos personagens acabarão tendo algum envolvimento com esta política. O nazismo foi construído historicamente e uma série de fatores históricos o possibilitaram neste período. Também é importante lembrar aonde o nazismo conseguiu chegar (morte, destruição, fome, ódio...). Uma saudade por tempos passados também aparece de alguma forma no desejo para que Gdańsk volte a ser parte do Reich (o que efetivamente ocorreu até que a guerra acabasse). Talvez Günter Grass desejasse advertir para alguns fantasmas que rondam o tempo passado, tão recente no período em que escrevera a obra. E talvez este "mundo adulto", negado ao princípio do filme, acabe sendo a causa de tanta coisa complicada que aconteceu. E quem sabe por isso, apenas ao fim da guerra, Oskar tenha finalmente decidido crescer, pois ai então o "mundo adulto" (o futuro dele, mas o presente anunciado) pudesse se mostrar mais promissor, apesar de todas cicatrizes existentes no corpo.

1 Para elucidar melhor a questão, seria interessante assistir ao filme: Arquitetura da destruição.
2A cidade de Danzig ganhará o status de autônoma depois da 1ª guerra ficando no meio do “corredor polonês”. Mais tarde ao fim da 2ª guerra, novas penalidades territoriais colocarão Danzig definitivamente em território polonês. Junto com essa penalidade houve um planejamento para evacuação da população de língua alemã desta região. Atualmente a Polônia tem uma das comunidades minoritárias de língua alemã mais bem organizadas do planeta, existindo ainda cidades bilíngues.