segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Maus - Art Spiegelman

     A Polônia me parece ser um ponto chave na segunda guerra, foi após a invasão deste país que a historiografia tradicional assinala o inicio do conflito. Geralmente compreendemos a Polônia, um país de menor importância, sendo invadido pelos terríveis nazistas. Esquecemos que a Polônia constituía parte do Lebensraum de Hitler, e que de alguma forma a Alemanha exercia profunda influência na Polônia (parece que ambos os países tem uma curiosa e complicada relação há muito tempo). Para piorar a situação dos poloneses, eles meio que eram desprezados pelos alemães nazistas por serem eslavos, e desprezados pelos russos soviéticos por serem “eslavos menores” - relação antiga já perceptível na obra de Dostoiévski – e em 1939 a Polônia se viu invadida por ambas nações, russos e alemães, sendo repartida entre ambos e criando um insignificante governo geral ao modelo de Vichy.
     Afastando-se das letras grandes e lendo as pequenas, Art Spiegelman joga uma lupa sob a ocupação nazista através dos relatos de seu pai¹, sobrevivente dos campos de concentração. O que me fascinou fora imaginar a localização da Polônia, quase que espremida por entre os países circundantes, e com uma pluralidade linguística alta, ocasionada devido a pluralidade étnica. Temos judeus asquenazes falando Jüdisch, poloneses e alemães, gerando uma mescla cultural e linguística que me interessa. Entretanto toda esta aparente mescla parece estar rodeada por certa tensão. Cavando um pouco mais veremos que a perseguição a judeus data de muito tempo, e infelizmente atritos entre grupos são muito comuns.
     A beleza da obra esta na proximidade e intimidade que vamos tendo conforme a leitura avança, com as pessoas e sobre as marcas do conflito, principalmente a perseguição e confinamento em campos de concentração (a maior parte deles estavam localizados, por sinal, na Polônia). Através dos relatos podemos entender como as pessoas conseguiam sobreviver. E como o campo significava morte certa.
     Os diferentes grupos étnicos são retratados por meio de animais, inteligentemente escolhidos, e neste caso Spiegelman leva vantagem ao ser judeu e poder retratá-los na figura de ratos, o que num primeiro momento causa espanto e parece arriscado, só colabora para comover e perder o caráter pejorativo contido na imagem (por sinal criada pela propaganda nazista). Me pergunto como as pessoas conseguiam ser tão rudes, mas observando a atitude delas frente a situação, infelizmente acabo entendendo que se fosse hoje em dia, elas dificilmente seriam diferentes. Por exemplo, para se conseguir uma ração extra dentro do campo, ato que poderia significar a continuidade de sua vida ou não, era preciso abrir mão de certas coisas, em resumo mover-se feito malabarista por entre os guardas do campo para obter pequenos favores.
     Talvez o que mais colabore para emocionar conforme a leitura se desenvolve seja a figura do pai de Art Spiegelman, um sujeito sisudo, um tanto individualista (difícil não ser num campo de concentração) e até mesmo preconceituoso quando do episódio da carona.





¹ Que residia no setor de ocupação nazista, deixando o histórico da ocupação soviética de lado, para mais detalhes assistir Katyn de Wajda.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Natimorto - Lourenço Mutarelli

        Conhecia Lourenço Mutarelli pelo livro e filme o cheiro do ralo, creio que junto com Mia Couto e Manuel de Barros ele representa o que vêm sendo produzido de melhor na literatura contemporânea de língua portuguesa. Sua escrita flui, como poucos escritores conseguem fazer, e quem escreve sabe o quanto isto é difícil, há muito trabalho para se alcançar este nível de escrita, até porque não existem fórmulas para escrever.
        Já consagrado no mundo dos quadrinhos, que infelizmente desconheço, aventura-se na literatura com cheiro do ralo, escrito segundo nos conta este homem pantufa, numa semana de carnaval. Seu hábito “caseiro”, ritmado a muito trabalho, café e cigarros, estão impressos no pouco contato que tive com seu trabalho (resumido em dois livros). No caso do Natimorto, o desejo do sujeito em ficar numa sala sem sair é contagiante e ao mesmo tempo claustrofóbico, as indagações feitas pela mulher de voz abençoada faziam eco as minhas. Os diálogos rápidos que conduzem sua obra dão a fluidez e sagacidade necessárias.
        Ultrapassando uma simples relação mediadas pelo sexo e o corpo, o autor vai conduzindo um personagem principal muito esperto e de raciocínio afiado, sem deixar de lado sua excentricidade. A fuga do mundo “lá fora” atinge em cheio muitos enseios meus – o que já é alguma coisa. O personagem principal não precisa daquele mundo chamado de real e existente, tudo ocorre ao redor de uma cama mofada em constantes xícaras de café. A comida é desprezada.
Há toda uma relação especial com o andar das coisas, uma fixação kafkaniana com o que está por vir. Mesmo sabendo que fumar pode lhe matar, o prazer esta em correr em alta velocidade e de pés descalços pelo fio da navalha. A coragem é necessária para fugir. Pode parecer uma observação vazia, mas há um identificação entre o agente e Raskolnikóv. Sua excentricidade e delírios caminham juntos. Não crime, pecado ou arrependimento, apenas uma mente conturbada, extremamente criativa e afiada. Odeio tais comparações, mas ambos possuem uma sinistra relação com seu quarto.
        A relação com a cidade está ali também. A rodoviária, o hotel, as indas e vindas. Mesmo trancado no quarto, a cidade pulsa ali, quase feito organismo vivo, que não se vê mas sente. Igual as batidas do coração ao colar a mão no peito. A eventual “fuga” para o sítio arquitetada pelo maestro, não deixa de ser um pequeno retiro num quarto de hotel. É no microcosmo deste ambiente que as historietas ganham vida. É entre a xícaras de café que elas estão. Apesar de muitas vezes terem um simplismo, não são em momento algum menos belas. Como escutei uma vez, “algumas vezes precisamos dizer o óbvio”. Por vezes isto ocorre na obra, mas não é uma obviedade boba, vazia e sem novidade. Até porque, o ideal é dizer algo duas vezes, pois quem diz sempre é o outro para quem escuta.
        Mutarelli dá vida de forma sóbria a consistente a estes personagens urbanos que podemos contemplar sentados numa mesa em algum lugar movimentado da cidade enquanto consumimos pacientemente nossa xícara de café.